sábado, 23 de novembro de 2019

Sobre autismo e uma vida no escuro

Aviso: este será um texto-desabafo longo e com trechos sobre suicídio, autoagressão e abuso

Eu sou autista. Sempre fui, sempre serei. E eu só descobri isso aos 26/27 anos. Algumas pessoas acreditam que, se você descobriu tão tarde, é porque não te afeta realmente, ou "é muito leve, né?". Descrevo aqui minha experiência com o meu muito-leve-nem-me-afeta-autismo.

Eu tenho dores de cabeça constantes e intensas desde que iniciei a vida escolar. Desde de quando fui  de fato inserida neste mundo colorido demais, barulhento demais, confuso demais. Barulho sempre foi um ponto delicado para mim. Não tenho lembranças tão claras, mas tive crises de choro, gritos e autoagressão por uma agonia intensa em situações que, para outras crianças, eram momentos felizes, como ir ao estádio ou ter uma festa de aniversário.

A festa de aniversário da qual me recordo mais vivamente na infância é a minha festa de sete anos. Teria a decoração da Minnie, que eu sempre adorei, minha avó tinha feito um vestido e comprado as orelhas para que eu estivesse caracterizada, e eu estava muito ansiosa e empolgada. E a lembrança que me vem mais vivamente da festa em si é o desespero que senti por causa do excesso de barulho e bagunça que aquela infinidade de pessoas estava fazendo. Lembro de ter procurado algum lugar calmo e vazio, de ter buscado desesperadamente por silêncio, mas todo canto tinha pessoas demais e barulho demais. Terminei em um quarto, chorando, gritando e implorando para que minha mãe mandasse as pessoas embora porque eu não aguentava mais. Essa é a lembrança mais vívida da festa que eu mais esperei. Não consigo lembrar de nenhuma parte boa daquele dia, mas ainda consigo sentir o desespero enquanto escrevo.

Sofri bullying na vida escolar do jardim à faculdade, se ainda podemos chamar de bullying na faculdade. Eu era (sou) muito inteligente e aprendia muito rápido, mas não compreendia (compreendo) em absoluto a dinâmica da classe e as regras daquele "jogo", e até os dez anos, eu andava nas pontas dos pés, meio pulando, e tinha ecolalia - repetia o que falava depois de falar. A fórmula para se tornar a vítima dos abusadores. Meu andar esquisito e minha ecolalia eram coisas que eu sequer percebia, eram naturais, confortáveis e, ouso dizer, necessários para aliviar meu estresse diário, e foram duas coisas que me forcei a parar porque não queria mais ser chacota. Imagine uma garotinha magricela e esquisita aos dez anos pesquisando e perguntando até para especialistas qual era a maneira correta de pisar no chão. Essa era eu. Foram meses de estresse, piadas e vigilância constante sobre meu andar e meu falar até finalmente me "livrar" desses "males".

Eu apanhava, era arranhada, era feita de tola nas "brincadeiras" do grupo, que se aproveitava do meu excesso de inocência e falta de compreensão. Consigo lembrar de situações em que meus colegas tiraram proveito de mim para fazer os deveres, pegar meus lanches e brinquedos, e até o pouco dinheiro que eu ganhava para comprar doces. E hoje, que sou um pouco menos tola, percebo também que fui motivo de piadas sexuais que eu não entendia e viravam risadas que eu entendia menos ainda inúmeras vezes. O primeiro beijo que eu dei na vida, que eu não queria dar porque, primeiramente, eu não entendia porquê, foi fruto de uma piada maldosa de um garoto e da insistência das minhas colegas igualmente maldosas de que eu devia beijá-lo porque todos já tinham beijado e eu não. Também fui motivo de piada por algum tempo entre a turma depois desse primeiro beijo. Eu tinha onze ou doze anos.

Perdi a conta de quantas vezes eu acabava aos prantos, gritos e autoagressões na escola. Muitas vezes, o tópico de discussão na escola ou em casa era como eu precisava lidar com a raiva porque eu era uma criança muito nervosa.

Mas não era só na escola que eu passava por isso. Meus primos, que foram referência para mim durante a infância por serem (dois e quatro anos) mais velhos, quando não me excluíam por completo das brincadeiras, me colocavam nelas apenas para me machucar ou se divertir me fazendo de boba. Não raro, eles inventavam brincadeiras cujo real intuito, levei um tempo a perceber, era rir de mim. As únicas vezes em que eu participava das brincadeiras deles de fato era quando haviam outras pessoas que forçavam a minha real inclusão.

Algo que também sempre colaborou muito para que esses 26 anos de obscuridade fossem realmente difíceis foi a minha falha grave em comunicação, sintoma claro do meu autismo. Sempre fui péssima para dizer não, para expressar o que eu sinto ou para entrar em qualquer assunto que pudesse gerar conflitos. O resultado disso foram incontáveis situações em que fui muito além do meu limite e terminei machucando a mim mesma de formas físicas e psíquicas por não conseguir expressar que eu não estava confortável em alguma situação. Acho que posso incluir aqui um tio que tirou a roupa na minha frente e me fez pegar no pênis dele e um namorado abusivo que me deixou traumas que até hoje não consegui superar por completo.

E meu namorado abusivo foi apenas o caso mais grave dentre os garotos com que já me relacionei, mas se fosse colocar em números, consigo lembrar de ao menos mais seis garotos que se aproveitaram da minha dificuldade em perceber quando alguém está tirando proveito de mim.

Acho, também, importante descrever a dinâmica com o resto dos meus familiares. Comer sempre foi difícil para mim porque, 1, eu não sinto fome quase nunca e, 2, como todo autista, eu tenho várias questões com comidas. Até mais ou menos oito anos, eu não gostava de misturar arroz e feijão porque não gostava do gosto e da textura. Eu gostava de comer o arroz puro com maçã, e o feijão igualmente puro. Também me incomodava muito, e incomoda até hoje, misturar as comidas no prato, mas quando outros fazem seu prato, eles misturam. Também sempre tive problemas com cebola, pouco pelo gosto e muito pela textura. Aquele "crec" quando se morde cebola crua ou pouco cozida me faz arrepiar por inteiro, e meu estômago revira dolorosamente. Mas quando se é uma criança com todas essas questões, tudo o que os adultos ao seu redor conseguem ver é uma menina mimada e cheia de frescuras. 

Também fui considerada mimada, mal educada e egoísta, por não gostar de compartilhar talheres, copos ou mordidas da comida que eu continuaria comendo. Lembro de inúmeras ocasiões em que, inclusive, fui forçada a compartilhar, e ninguém jamais compreendeu ou tentou compreender que era algo mais psicológico para mim. Não era como se eu conseguisse controlar o enjoo no estômago e a dormência nas mãos quando eu precisava pegar de volta o picolé lambido. E também não é como se eu não pudesse ou não devesse aprender a compartilhar, mas haviam jeitos menos dolorosos e traumáticos de se fazer isso.

Eu era tímida, e por mais que adorasse meus parentes, às vezes eles eram barulhentos e incômodos, e eu não queria falar com eles, mas eu não tinha o direito de ter meu tempo e espaço respeitados sem ser, novamente, taxada de mimada. Por eu estar sendo criada pelos meus avós, a única resposta para qualquer comportamento atípico ou diferente do desejado era que meus avós me mimavam muito.

Eu também achava, e acho até hoje, muito, mas muito difícil mesmo, falar com estranhos. Interagir com alguém para comprar algo ou pedir informações ou para ser atendida em algum serviço do qual preciso é uma tormenta que eu evito e adio ao máximo até hoje, mas a medida que fui crescendo, fui apenas empurrada a fazer isso, não importando o quanto pudesse me afetar, ou quão mal eu ficasse depois. Crise de choro? Crise de enxaqueca? Tremer e não conseguir falar por um tempo devido ao trauma de interagir quando não estou mentalmente preparada para isso? "Você já é grande, tem que se virar sozinha!". Novamente, não acho que eu não devesse fazer todas essas coisas. Novamente, não acho que a forma adotada pelos meus familiares foi a mais saudável. Principalmente porque, hoje, quando já sou adulta, eles não podem mais me obrigar, e eu não evoluí um passo sequer em "me virar sozinha". Tenho um dente doendo há meses, mas para ir ao dentista, preciso interagir com a secretária e com o dentista, então eu provavelmente vou seguir adiando até ter um dente a menos.

Isso é basicamente o que eu faço para praticamente tudo que envolva eu ter que lidar, sozinha, com interagir com qualquer estranho, por qualquer motivo. Eu até mesmo desço na parada errada quando o motorista não pára na minha parada após a sinalização com o botão, porque não consigo abrir a boca e dizer "motorista, vai descer aqui". As palavras vem na minha cabeça bem fácil, mas a ponte que transfere elas para a boca e depois para o mundo nunca foi construída.

A adolescência é um pesadelo para qualquer um, mas imagine para uma pessoa autista que não sabe que é autista e, portanto, não sabe que o padrão dos outros não é o seu. É como tentar encaixar a força e a custo de qualquer dano um quadrado em uma forma redonda. E o resultado foram pensamentos suicidas quase diários e inúmeras crises em que eu acabava socando a parede até minha mão ficar roxa ou cortando meu braço inteiro com uma gilete. Acho que eu nem tinha treze anos quando isso começou.

Tentar me encaixar no padrão das outras pessoas da minha idade me trouxe uma série de pequenos traumas que eu ainda trabalho. Vários colapsos em shows ou baladas porque estava cheio, barulhento e/ou brilhante demais. O pior de tudo? Eu nunca percebia o quanto essas coisas estavam me afetando até estar aos prantos incapaz de parar de tremer ou me debater. 

Fiz sexo com três homens a minha vida toda. Quis fazer sexo com um homem a minha vida toda. Não, não fui estuprada. Não, eu não queria e não me sentia confortável para fazer sexo, mas eu era normal, eu era como todo mundo e todo mundo estava me dizendo, incansavelmente, que sexo era maravilhoso, que eu devia fazer, e que eu estava perdendo o melhor da vida. Só que eu não era como todo mundo. E essas experiências sexuais ainda voltam como traumas e às vezes me fazem chorar até hoje. Não culpo meus amigos que insistiram tanto para que eu transasse, afinal, eles não sabiam. Mas eu culpo o sistema falho, e a falta de pesquisas que poderiam ter ajudado a me diagnosticar antes. Assim eu teria aceitado muito antes que sexo, para mim, é completamente diferente do que é para outras pessoas porque eu sou autista. E teria parado de forçar o quadrado a encaixar na maldita forma redonda.

E para quem ainda acha que meu autismo leve que não foi diagnosticado antes não faria diferença para mim porque, afinal, eu cresci, terminei uma faculdade e consegui um emprego sem um diagnóstico, termino este texto com o relato do meu agora.

Acabo de passar um dia inteiro no trabalho sem conseguir dizer uma palavra sequer por uma condição chamada mutismo seletivo, que acontece quando pessoas autistas estão em momentos de extremo estresse e exaustão com o mundo. Também tenho um quadro depressivo, um pulso ferrado e uma crise de enxaqueca decorrentes de um colapso nervoso, que tive há dois dias, em que não consegui controlar meu corpo e me impedir de bater os braços e a cabeça na parede. 

Esse tem sido meu agora há quatro meses.

Ainda assim, pela primeira vez em 14 anos, não penso em suicídio todos os dias da minha vida porque, agora, eu entendo que sou um quadrado. Pela primeira vez, eu consigo passar mais de uma semana sem dores de cabeça fortes porque agora entendo minhas limitações e não me exponho a sons, luzes e cheiros fortes que, nesse mundo neurotípico, são excessivos. Pela primeira vez, eu consigo acordar feliz e ter esperança de que minha vida realmente vai melhorar porque, finalmente, eu me entendo e me aceito como sou.

O diagnóstico precoce não faria diferença...

terça-feira, 31 de maio de 2016

Da primeira vez, eu tinha cinco anos, talvez menos. Tudo que eu lembro é de estar sozinha num quarto diante de um cara sem roupas que me pedia pra tocá-lo. Eu não faço ideia do que mais aconteceu além disso, e tudo que eu lembro são flashes, mas eu sinceramente não sei se quero me lembrar de mais. E mesmo lembrando só disso, muitos transtornos da minha infância e adolescência só fizeram sentido com essa memória frágil. Nunca contei sobre isso pra ninguém até pouco tempo atrás.

Da segunda vez, eu já tinha dezoito, já estava trabalhando e precisava pegar ônibus pra ir e vir do trabalho todos os dias. O percurso era de dez minutos, e o ônibus era sempre muito cheio. Numa dessas vezes, um homem parou atrás de mim e começou a se esfregar. A princípio, eu pensei que fosse acidental, que fosse por o ônibus estar mesmo muito cheio, mas quando olhei pra trás, ele sorriu irônico pra mim. Eu ainda tentei me afastar, chegar mais pra frente, e acabou que fiquei presa entre ele e a roleta, que eu não tinha como girar porque o caminho estava todo obstruído por pessoas. Ele se aproveitou disso por todo o trajeto, e em todas as vezes em que eu olhei pra ele, ele tinha uma mistura de ameaça com ironia no olhar, e eu fiquei calada. Tive vergonha demais pra pedir ajuda pra cobradora, pra gritar em alto e bom tom que ele parasse de usar a situação pra abusar de mim (sim, isso é um abuso), e passei os dez minutos tentando, de alguma maneira, me livrar dele enquanto ele fazia aquilo. Só consegui me livrar quando desci, e quando cheguei em casa, estava aos prantos, soluçando, me encolhendo e com nojo de mim e dele. Demorei uns cinco minutos pra conseguir dizer ao meu pai - muito envergonhada - o que tinha acontecido. Não esqueço as palavras dele. "Isso acontece, é assim mesmo, não precisa chorar assim". Eu te amo, e o senhor é o homem que eu mais respeito no mundo, papai, mas não, isso não é assim, ou ao menos não deveria ser. Eu ainda fui tolinha de tentar ligar pra companhia de ônibus com uma queixa, mas o que eles disseram foi que não podiam fazer nada. Nada foi feito. Eu ainda lembro o rosto do homem até hoje, cinco anos depois.

A terceira vez não envolveu situações de abuso físico de fato, mas envolveu uma situação que eu levei quatro anos pra perceber, quase em choque, o caráter abusivo. Ele foi meu namorado por mais de um ano, era um namoro a distância, e talvez por causa disso, muitas pessoas vão dizer "por que você fazia o que ele mandava se ele nem aí estava?", ou "Tá vendo? Namorar pela internet dá nisso", e eu entendo, também me pego muitas vezes pensando que a culpa foi minha por ter aceitado, por ter permitido, por tanto tempo, tudo o que aconteceu. Mas era pra ser um relacionamento normal, gostoso, e até tiveram momentos bons. Ele sabia ser romântico quando queria, sabia como fazer eu me sentir especial quando queria algo. O problema era o resto do tempo, principalmente quando a gente brigava, e a gente brigava muito. Ou ele brigava muito. A primeira briga, na semana em que começamos o namoro, foi porque eu saí pra lanchar com as minhas tias e nós demoramos mais do que ele achou que devíamos ter demorado pra um simples lanche. Ele brigou comigo por metade de uma madrugada, gritando, dizendo palavrões e tentando, de todas as formas, me convencer de que era um absurdo eu ter saído pra lanchar e ter demorado tanto. Acusou-me até de ter feito outras coisas, ter saído com outras pessoas, e no fim, conseguiu me convencer de que o erro foi meu. Uns poucos meses de namoro, e nós tínhamos brigado mais do que todos os dias do namoro em que estivemos juntos de fato. Ele brigava quando eu conversava com algum homem - qualquer um - na faculdade ou no trabalho - qualquer coisa que passasse de um "oi" frio e seco era motivo pra briga -, brigava quando eu usava saia, short, regata ou qualquer peça que ELE julgasse ser decotada ou colocar em evidência, ainda que sutilmente, qualquer curva minha, brigava se eu usasse batom ou perfume pra ir pra faculdade ou pro trabalho, brigava se eu saía de casa e chegava uns minutos mais tarde do que eu tinha dito que chegaria, e se eu ia pra qualquer lugar diferente do previsto ou com pessoas diferentes das que eu tinha informado. Claro, se eu ia sair, com qualquer pessoa, eu precisava avisar com dias de antecedência, e precisava deixar claro onde ia, com quem ia, e por quanto tempo ficaria lá. Meu horário pra voltar para casa: onze da noite, porque mulher sozinha não tem que estar na rua depois desse horário, é perigoso, é coisa de mulher vadia. "Pra que que você vai passar batom pra ir pra faculdade? Você quer chamar atenção de algum homem? Perfume? Tá louca? Você não acha que passar perfume e batom vai chamar atenção de outro homem pra você? Nenhum homem tem que olhar pra você, você não tem que ficar se vestindo pra chamar atenção de outro homem, você tem namorado! Tem que usar roupa comum e tênis, roupa sem decote, pra ninguém ficar te olhando. Como você acha que eu fico de saber que você tá vestida demais por aí e tá chamando atenção de outro homem? Você não pode se vestir assim se quiser ser minha namorada, namorada não faz isso, namorada não chama atenção de outro homem pra ela, mulher comprometida não tem que falar com outro homem. O que? Ele falou oi sorrindo pra você? Você vai cortar ele! Nunca mais vai falar com ele!" Foram muitos meses de brigas até chegarmos a um acordo. O acordo? Fizemos uma lista de "regras do relacionamento", que incluía todas as coisas que eu podia ou não podia fazer. Claro que ele monitorava tudo que eu fazia, e até as músicas que eu escutava. "Isso é música de vadia! É isso que você quer? Dançar a noite toda e pegar alguém na pista de dança? Porque é isso que a música fala, e se você escuta isso, você quer isso! Se você quer isso, vai lá, vai ser vadia! Eu não quero namorada vadia que escuta essas merdas!". Em todas as nossas brigas, ele sempre acabava gritando, sempre xingava, sempre partia pra ofensa pessoal. No começo, eu também gritava, porque perdia o controle com ele gritando o tempo todo. E minha avó sempre me censurava. "Você não pode gritar com ele" "Mas ele também gritou comigo" "Mas você não pode, você é mulher, tem que respeitar". Ele fazia Medicina, eu fazia Direito, e isso significa que ele era muito mais inteligente que eu, e que o curso dele era muito melhor que o meu, e que ele era muito melhor que eu. Claro que eu nunca podia discordar da opinião dele, nem dar opinião sobre coisas que não envolvessem "assunto de mulher" porque eu não sabia de nada e estava falando merda. Eu trabalhava o dia inteiro, estudava de noite, mas era ele quem sempre estava mais cansado, era ele quem sempre se esforçava mais, se estressava mais, porque afinal ele fazia medicina, e eu só trabalhava numa escola e não fazia nada o dia inteiro, e direito era o curso mais fácil do mundo. Meus amigos, obviamente, não gostavam dele, e eu me afastei de todos eles, porque eles eram "má influência", queriam que eu fosse vadia, e isso ele não ia aceitar. Papai sempre dizia que ele ia acabar me batendo um dia, e eu sempre brigava com papai por dizer isso. Até que um dia ele bateu. Foi só um tapa, mas doeu tanto. Doeu na alma. Doeu pensar em todas as vezes em que papai disse isso e eu briguei porque "Fulano me ama, ele nunca faria isso, o senhor só diz isso porque não gosta dele". Doeu ver que eu estava errada, e doeu saber que o homem que eu amava e por quem estava deixando tudo tinha me batido. E o tapa nem foi o pior. O pior foi quando eu me afastei incrédula, chorei, solucei, me debati porque não queria ele perto de mim, e ele, pra tentar fazer eu esquecer tudo ou me sentir culpada, fingiu que estava passando mal. Ele prometeu que nunca mais ia fazer isso, eu perdoei. Um dia ele desrespeitou o pai dele porque o pai dele disse "leva a identidade" quando estávamos saindo, algo que fazia sempre, e eu cometi o erro absurdo de censurar ele. Ele brigou comigo por eu tê-lo censurado, disse uns absurdos, umas ofensas que me deixaram zangada, então eu me afastei dele e comecei a andar à frente, mais rápido, mas mulher nenhuma anda na frente dele. "Volta aqui, você tem que andar comigo!". Não voltei. Ele me agarrou pelo braço e me puxou. Meu braço ficou roxo. E além das agressões físicas, tinha também toda a chantagem emocional, que ele sabia fazer bem, porque sabia o quanto eu gostava dele e o quanto, depois de ter me afastado de todos os meus amigos, eu precisava dele. Eu só tinha ele. Foram tantos xingamentos que eu perdi a conta. Nunca esqueço o último deles, o estopim pra eu terminar. Eu estava querendo viajar pra vê-lo e precisava dele pra definir as datas, mas ele estava enrolando e as passagens encarecendo. Quando já estava ficando em cima da hora demais, eu pedi que ele se apressasse. Ele me chamou de "demente do caralho". Isso foi piada entre os meus amigos, dos quais eu voltei a me aproximar quando a situação com ele já estava ficando insustentável. Me juntei a eles nas piadas e nas risadas. Meus amigos nunca souberam o quanto aquele "demente do caralho" doeu. Também nunca souberam o quanto doeu o puxão no braço. Ou o tapa. Ou todas as outras ofensas, e todas as vezes em que ele me diminuiu. Por eu não fazer medicina. Por eu gostar de coisas que ele não gostava. Por eu ser mulher. Ele fez tudo isso comigo porque ele acreditava que podia fazer, porque ele achava que eu era uma propriedade dele, que eu só podia fazer o que ele permitia, agir segundo as regras dele. E ele acreditava nisso porque ele foi ensinado a acreditar nisso. Ele foi ensinado a acreditar que eu era uma propriedade dele. Não sei se os pais dele ensinaram isso a ele, mas a sociedade ensinou. Porque a sociedade é assim. A sociedade ensinou aos homens que eles tem que mandar, que é direito deles ditar o que as mulheres "deles" podem ou não fazer, o que elas podem ou não usar. A sociedade ensinou a homens como este meu namorado que eles podem xingar, ofender e diminuir mulheres porque elas são mulheres. A sociedade também ensinou, por muito tempo, que mulheres tem que se submeter aos homens, que elas tem que obedecer. E foi por isso que, por tanto tempo, eu aceitei tudo o que ele fazia, eu engoli calada tudo que ele me dizia. Foi por isso que, por mais de um ano, eu achava que aquilo era normal porque "homens são assim mesmo". Foi por isso que eu demorei tanto pra perceber que eu fazia parte da estatística de agressão e abuso contra a mulher.

E é por isso que precisamos do feminismo. É por isso que precisamos lutar contra essa cultura que ensina homens a ver mulheres como propriedade e a tratá-las como bem entenderem, e ensina mulheres a aceitarem caladas o tratamento abusivo que recebem.

Mulheres, se alguma de vocês vive o que eu vivi e narrei acima, saibam que isso também é abuso, que isso está, inclusive, na Lei Maria da Penha. Constranger, ofender, humilhar, xingar, desvalorizar moralmente, oprimir, controlar, e até essa segurada com força, tudo isso também é violência, e nenhuma de vocês precisa passar por isso. Não sejam como eu, não demorem tanto a perceber que vocês fazem parte da estatística de vítimas da violência doméstica, e não demorem tanto a sair dela. Não importa o quanto amemos alguém, nenhum amor deve superar nosso amor próprio.


Texto escrito para o facebook, mas eu ainda não estou pronta pra tornar tudo isso público, então que fique aqui.

segunda-feira, 11 de maio de 2015

De todos os males...

Esperança...

O principal remédio, mas também o pior veneno. O mundo precisa da esperança porque, muitas vezes, ela é tudo o que resta. Sem a crença de que haverá um amanhã melhor, por que viver para esperar por um novo dia?

Mas é essa mesma esperança que, como um veneno, nos mata um pouquinho a cada vez que nos frustramos. Por que estaria ela trancada na famosa caixa que continua dentro de si todos os males do mundo, e por que permaneceu lá, se não fosse ela também um mal, e talvez o maior de todos?

As coisas podem não estar como desejamos, as pessoas podem não ser quem esperamos, mas se há esperança, então nos agarramos a esta crença tola de que ainda pode melhorar e não desistimos daquilo que a muito devia ter sido esquecido. Não fosse a maldita esperança, talvez nem mesmo tivéssemos tentado e dedicado nosso tempo a causas que só tarde demais percebemos que, desde o começo, já estavam perdidas.

Podíamos ter seguido em frente. Podíamos ter tentado outros projetos, outros trabalhos, outras pessoas, não fosse a maldita esperança.

Mas vivemos disso... Esperar...

Esperar que aquela tenha sido a última briga...
Que aquele tenha sido o último deslize...
A última falha...

Mas quando será nosso último suspiro?
Quantas chances atiramos ao vento por nos agarrar à esperança?
Quantas coisas teremos deixado de viver simplesmente por insistir nessa maldita esperança?

A esperança é o que nos move mas, paradoxalmente, também é o que nos prende.

Será que algum dia vamos parar de firmar nosso futuro nesse incerto terreno da espera?

Que não seja tarde demais...

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Amor de ônibus

Você entra no ônibus, e assim, meio sem querer, acaba pousando o olhar em alguém que te cativa. Pode ser pelo jeito de olhar, pelo sorriso, pela gentileza quando você estava tentando passar no corredor minúsculo e lotado com uma bagagem enorme, ou pode ser pela aparência mesmo, afinal, que atire a primeira pedra quem nunca se rendeu a um rostinho bonito. Você subitamente cai de amores, e naqueles minutos enquanto o ônibus vai dobrando avenidas e você tenta se segurar, você se pega lançando olhares tímidos enquanto sua mente imagina sua vida inteira ao lado daquele desconhecido de quem sequer o nome você sabe. Às vezes, até rola uma troca de sorrisos e um diálogo experimental iniciado com o típico "Tá quente hoje, né?". E então, rápido demais para o seu contentamento, sua parada chega, você desce e nunca mais encontra o par romântico do seu roteiro de amor escrito em movimento.

A gente não sabe, mas nossa vida inteira é uma constante troca de ônibus. E de amores de ônibus.

A gente encontra um amor de ônibus na balada, numa tarde despretensiosa no shopping, num site de relacionamento que a gente nem lembrava mais que acessava... E depois de um tempo de conversa, de um pouco de debates sobre religião, política, futebol ou sobre coisas mais banais como o quanto a pronúncia do inglês é mais bonita na Inglaterra ou como Scorsese é melhor que Tarantino, a gente vê que se apaixonou. Vem o sorriso bobo com cada "bom dia" recebido já nas primeiras horas da manhã, e a sensação de incompletude se o "bom dia" não vem. Vem aquele frio no estômago com a declaração inesperada, e o medo de se declarar de volta. Você ri, chora, se desespera, se decepciona, morre de amor em um segundo, e no outro percebe que já planejou até a escola onde os filhos de vocês vão estudar e a comemoração das suas bodas de prata! E parece mesmo que vai ser eterno, que vai ser pra sempre.

E então sua parada chega e você lembra que tem que descer.

Você olha pro lado, dá aquela olhadinha meio insegura pro amor da sua vida, e assim, meio hesitante, meio chateada por precisar descer tão rápido, você vai embora. Com aquele aperto no peito e aquela dúvida no olhar, você olha pra trás, e então começa a perceber que, no fim das contas, nem era tudo aquilo que você sonhava, que nem poderia realizar metade das coisas que sonhava porque era tudo impossível demais, perfeito demais para um mundo de pessoas imperfeitas. No fim, até os sonhos eram imperfeitos. Você se pergunta se todos os "te amo" gastos ali não foram em vão, e se arrepende por ter dito uma frase tão forte em uma viagem que, agora você lembra, é passageira.

Mas depois de pensar, você percebe que não foi em vão. Intenso e exagerado, talvez, mas afinal, você precisava pegar aquele ônibus, você precisava chegar ao seu destino, e às vezes, a aventura cai bem pra tornar o trajeto menos rotineiro. Qual seria a graça se a viagem fosse sempre igual? Um pouco de reviravoltas, freadas bruscas e curvas perigosas, mesmo que nos confundam, nos desalinhem e às vezes até nos partam em centenas de pedaços, é necessário pra nos ajudar nessa vida que é uma eterna troca de estações.

E no fim das contas, você sabe que, cedo ou tarde, vai precisar pegar outro ônibus.

domingo, 6 de janeiro de 2013

H.E.L.P

Eu não gosto de pessoas. 

Fico aflita em lugares cheios, odeio barulho demais, vozes demais. Gente que fala demais me assusta, me irrita, me aflige por completo. Gente que toca em mim sem que eu esteja preparada pra ser tocada também. Interação social é uma tormenta que sempre me deixa cansada, física e, principalmente, mentalmente. Não gosto de sair de casa, não gosto de pessoas vindo na minha casa. Mais de uma pessoa por vez, a menos que eu esteja preparada, já é um exagero. 

Meu primo baby favorito esteve aqui hoje. Ele é apaixonado por mim, e eu por ele. Não saí do quarto para vê-lo porque junto com ele estavam outras pessoas com as quais eu não queria me inteirar.

Não quero ir trabalhar amanhã. Não quero ver pessoas dentro do ônibus, não quero ver pessoas no trabalho. A ideia de precisar sair de casa, na verdade, está me angustiando. A ideia de eu precisar falar com essas pessoas, mais ainda. Não estou pronta pra sair. Não me sinto pronta pra sair.

Não sei o que há comigo. Não sei nem me expressar direito o que sinto. Não consegui me achar hoje. Nada do que eu pensei em fazer hoje foi bem sucedido. Não me animei para absolutamente nada, e continuo sem animação para absolutamente nada. Minha única vontade é ficar dentro de um quarto, longe de tudo e de todos, balançando o corpo e pensando em qualquer coisa sem nenhum sentido. 

O melhor lugar que eu encontro no momento para ficar é dentro da minha própria cabeça, longe de qualquer barulho, longe de qualquer pessoa. Estou tremendo, e as vozes malditas na televisão só estão me deixando ainda mais nervosa. Não estou conseguindo ficar parada e me concentrar em algo aqui fora. Nem mesmo no pc, nem no amor da minha vida falando comigo na janela do lado. Minhas mãos estão dormentes, e é uma sensação muito estranha a de que eu preciso apertá-las o tempo todo. 

Não consigo falar com as pessoas hoje.

Tem uma maldita luz de carro entrando pela fresta do portão que está me incomodando horrivelmente. Quase tanto quanto as vozes da tv, ou talvez mais. Estou parecendo uma maluca, eu sei. Tenho consciência disso. E a maldita luz no portão não apaga.

Apagou. Ao menos isso.

Continuo tremendo. E agora também com vontade de chorar.

Não quero sair de casa amanhã. Posso faltar ao trabalho?! E à vida?!

terça-feira, 9 de outubro de 2012

Apontas meu orgulho, mas não percebes o teu próprio...

Sim, sou orgulhosa, e o reconheço. Conheço meu orgulho melhor do que ninguém, sou obrigada a conviver com ele desde que nasci. Há, pois, uma razão para que eu me identifique tanto com o filme Orgulho e Preconceito, principalmente com a orgulhosa Lizzie. 

Mas tu me colocas a testar meu orgulho. Não o testes, estás cansada de saber que ele muito bem funciona. Estou, também, cansada de saber que preciso domá-lo. 

E tu me confundes. Em um momento, sou crucificada por não ter confidenciado minha mágoa de imediato; no momento seguinte, sou crucificada por tê-lo feito.

Há algo que tu precisas entender, anjo. Se eu me afasto quando me irrito, se não digo de imediato o que me aflige, é por me conhecer o bastante para saber que não é, pois, aquele, o momento oportuno para fazê-lo. Tenho o péssimo hábito de afiar a língua quando sou magoada, e por saber disso, às vezes opto pela cautela de esperar que minha mágoa passe, para que eu possa assim lhe falar. Mas tu não entendes isso, e se não lhe digo de imediato, se não lhe busco de imediato, se não lhe confesso no ímpeto minhas aflições, isso se torna motivo para horas torturantes de discussões.

Pediste para que eu lhe confiasse logo minha revolta, e mesmo sabendo que nem sempre seria este o melhor caminho, na primeira oportunidade, por algo bobo, admito, tentei fazer o que me pediste. Aguardei alguns minutos, decidindo entre lhe dizer ou não, e por fim corri a ti, naquele meu modo um pouco recuado, para contar de meu ciúme. O que tu fizeste?! Reagiste de forma totalmente contrária à que eu gostaria, esperava e precisava que agisses naquele momento. Foste ainda mais arredia do que eu, fazendo-me indagar por que então disseste a mim que lhe confiasse meus medos, se quando o faço tu reages assim.

Entendes agora meu dilema, anjo?! Se não falo, erro. Se falo, erro igualmente. E o que mais me assombra é o fato de, com tua reação, eu mesma ter me intimidado, recuado diante de tudo. Esta foi a primeira vez em que demonstrei ciúme por causas tolas, e tu me recebeste assim. Agora, sinto-me compelida a guardar para mim meu ciúme e minhas chateações, com medo de que tua reação venha a ser a mesma. Sinto que preciso compartilhar contigo as coisas que me incomodam, mas não mais me vejo a vontade para tal. Não mais consigo crer que, se o fizer, serei compreendida. 

Não estou tirando de mim a culpa que é minha. Reconheço que minha abordagem não foi tão doce como as tuas, mas mesmo apesar dela, não era uma reação de ira e revolta o que tu me devias, não depois de afirmar que eu deveria me expressar se me algo me magoasse.

Devo confessar, hoje, pela primeira vez, começo a ter medo. Medo do que pode vir a ser o futuro sem esse diálogo. Medo de como as coisas se desenvolverão daqui em diante. Medo de que eu não mais consiga me sentir segura para lhe confessar meus temores e dores, sejam eles tolos ou não. Temo que, por não me sentir a vontade para lhe falar, por causa da tua reação, eu acabe acumulando coisas demais em um corpo tão pequeno, e um dia acabe por sucumbir.

Pedi que tu te colocasses no meu lugar, me coloquei também no teu, e entendo teu modo de me ver, vindo a ti, tão cheia de meias palavras, mas, estando em teu lugar, não consigo entender teu modo de agir. Me soa como uma canção destonante. E o que mais me apavora, tu não entendes também minha posição, não consegues te colocar em meu lugar. 

Sinto-me na obrigação de lhe confidenciar também que, quando perguntaste se eu achava que brigaríamos mais ou menos caso estivéssemos perto, não lhe dei a resposta completa. Uma parte de mim, convictamente diz "menos", embasada principalmente no fato de que todas as nossas brigas resumem-se a motivos insignificantes, que não teriam, pois, espaço em nossas vidas caso estivéssemos próximas uma da outra. Por outro lado, outra parte, esta menos confiante e influente, afirma que pessoalmente encontraríamos outras razões pelas quais brigar, razões mais reais, mais palpáveis, e mais graves. Como um todo, acredito na primeira parte, mas não nego, a outra parte ainda existe dentro de mim, encolhida em um lugar de minha mente. É aquela pontinha de realidade que cutuca nossa mente quando vivemos um sonho perfeito demais e nos diz "Acorda!".

Peço, agora, mais uma vez, que me perdoe. Exijo demais, cobro demais, eu sei. É algo que não consigo ainda controlar, e algo com o qual tu não consegues ainda lidar. Nos amamos, nos fazemos profundamente felizes, disso não há que se duvida. Mas não conseguimos ainda encontrar o tom certo para a nossa canção. Se o acharemos, honestamente não sei. Mas acredito no amor. 

Amar não é o bastante, é o que dizem. Mas que importa o que dizem quando tenho você, e toda a minha vontade de fazer dar certo?

quinta-feira, 26 de julho de 2012

Ying Yang

E um dia, você acaba descobrindo que o certo na verdade era o errado, e que o que você sempre achou ser errado, talvez seja o certo. Um dia você acorda virada do avesso, e acaba percebendo que gosta bem mais do avesso.

Mas certo, errado, afinal quem foi que escreveu as regras, e ditou pra nós qual era o lado de lá e qual era o lado de cá?! Não existe uma linha que divida os dois extremos. Na verdade, eles nem mesmo são extremos, são dois lados de um inteiro onde não existe todo bem, nem todo mal. Tudo é luz e trevas.

Você descobre desejos que não tinha, sonhos que nunca sonhou, e acaba descobrindo que esses novos desejos, esses novos sonhos muito te agradam. E por mais que possa parecer errado, você acaba cativando esses novos sonhos, e esses novos desejos. Porque afinal, eles podem acabar se tornando bem interessantes. E porque, no fim das contas, o que você vai levar dessa vida é o que arriscou, e não o que temeu.