Aviso: este será um texto-desabafo longo e com trechos sobre suicídio, autoagressão e abuso
Eu sou autista. Sempre fui, sempre serei. E eu só descobri isso aos 26/27 anos. Algumas pessoas acreditam que, se você descobriu tão tarde, é porque não te afeta realmente, ou "é muito leve, né?". Descrevo aqui minha experiência com o meu muito-leve-nem-me-afeta-autismo.
Eu tenho dores de cabeça constantes e intensas desde que iniciei a vida escolar. Desde de quando fui de fato inserida neste mundo colorido demais, barulhento demais, confuso demais. Barulho sempre foi um ponto delicado para mim. Não tenho lembranças tão claras, mas tive crises de choro, gritos e autoagressão por uma agonia intensa em situações que, para outras crianças, eram momentos felizes, como ir ao estádio ou ter uma festa de aniversário.
A festa de aniversário da qual me recordo mais vivamente na infância é a minha festa de sete anos. Teria a decoração da Minnie, que eu sempre adorei, minha avó tinha feito um vestido e comprado as orelhas para que eu estivesse caracterizada, e eu estava muito ansiosa e empolgada. E a lembrança que me vem mais vivamente da festa em si é o desespero que senti por causa do excesso de barulho e bagunça que aquela infinidade de pessoas estava fazendo. Lembro de ter procurado algum lugar calmo e vazio, de ter buscado desesperadamente por silêncio, mas todo canto tinha pessoas demais e barulho demais. Terminei em um quarto, chorando, gritando e implorando para que minha mãe mandasse as pessoas embora porque eu não aguentava mais. Essa é a lembrança mais vívida da festa que eu mais esperei. Não consigo lembrar de nenhuma parte boa daquele dia, mas ainda consigo sentir o desespero enquanto escrevo.
Sofri bullying na vida escolar do jardim à faculdade, se ainda podemos chamar de bullying na faculdade. Eu era (sou) muito inteligente e aprendia muito rápido, mas não compreendia (compreendo) em absoluto a dinâmica da classe e as regras daquele "jogo", e até os dez anos, eu andava nas pontas dos pés, meio pulando, e tinha ecolalia - repetia o que falava depois de falar. A fórmula para se tornar a vítima dos abusadores. Meu andar esquisito e minha ecolalia eram coisas que eu sequer percebia, eram naturais, confortáveis e, ouso dizer, necessários para aliviar meu estresse diário, e foram duas coisas que me forcei a parar porque não queria mais ser chacota. Imagine uma garotinha magricela e esquisita aos dez anos pesquisando e perguntando até para especialistas qual era a maneira correta de pisar no chão. Essa era eu. Foram meses de estresse, piadas e vigilância constante sobre meu andar e meu falar até finalmente me "livrar" desses "males".
Eu apanhava, era arranhada, era feita de tola nas "brincadeiras" do grupo, que se aproveitava do meu excesso de inocência e falta de compreensão. Consigo lembrar de situações em que meus colegas tiraram proveito de mim para fazer os deveres, pegar meus lanches e brinquedos, e até o pouco dinheiro que eu ganhava para comprar doces. E hoje, que sou um pouco menos tola, percebo também que fui motivo de piadas sexuais que eu não entendia e viravam risadas que eu entendia menos ainda inúmeras vezes. O primeiro beijo que eu dei na vida, que eu não queria dar porque, primeiramente, eu não entendia porquê, foi fruto de uma piada maldosa de um garoto e da insistência das minhas colegas igualmente maldosas de que eu devia beijá-lo porque todos já tinham beijado e eu não. Também fui motivo de piada por algum tempo entre a turma depois desse primeiro beijo. Eu tinha onze ou doze anos.
Perdi a conta de quantas vezes eu acabava aos prantos, gritos e autoagressões na escola. Muitas vezes, o tópico de discussão na escola ou em casa era como eu precisava lidar com a raiva porque eu era uma criança muito nervosa.
Mas não era só na escola que eu passava por isso. Meus primos, que foram referência para mim durante a infância por serem (dois e quatro anos) mais velhos, quando não me excluíam por completo das brincadeiras, me colocavam nelas apenas para me machucar ou se divertir me fazendo de boba. Não raro, eles inventavam brincadeiras cujo real intuito, levei um tempo a perceber, era rir de mim. As únicas vezes em que eu participava das brincadeiras deles de fato era quando haviam outras pessoas que forçavam a minha real inclusão.
Algo que também sempre colaborou muito para que esses 26 anos de obscuridade fossem realmente difíceis foi a minha falha grave em comunicação, sintoma claro do meu autismo. Sempre fui péssima para dizer não, para expressar o que eu sinto ou para entrar em qualquer assunto que pudesse gerar conflitos. O resultado disso foram incontáveis situações em que fui muito além do meu limite e terminei machucando a mim mesma de formas físicas e psíquicas por não conseguir expressar que eu não estava confortável em alguma situação. Acho que posso incluir aqui um tio que tirou a roupa na minha frente e me fez pegar no pênis dele e um namorado abusivo que me deixou traumas que até hoje não consegui superar por completo.
E meu namorado abusivo foi apenas o caso mais grave dentre os garotos com que já me relacionei, mas se fosse colocar em números, consigo lembrar de ao menos mais seis garotos que se aproveitaram da minha dificuldade em perceber quando alguém está tirando proveito de mim.
Acho, também, importante descrever a dinâmica com o resto dos meus familiares. Comer sempre foi difícil para mim porque, 1, eu não sinto fome quase nunca e, 2, como todo autista, eu tenho várias questões com comidas. Até mais ou menos oito anos, eu não gostava de misturar arroz e feijão porque não gostava do gosto e da textura. Eu gostava de comer o arroz puro com maçã, e o feijão igualmente puro. Também me incomodava muito, e incomoda até hoje, misturar as comidas no prato, mas quando outros fazem seu prato, eles misturam. Também sempre tive problemas com cebola, pouco pelo gosto e muito pela textura. Aquele "crec" quando se morde cebola crua ou pouco cozida me faz arrepiar por inteiro, e meu estômago revira dolorosamente. Mas quando se é uma criança com todas essas questões, tudo o que os adultos ao seu redor conseguem ver é uma menina mimada e cheia de frescuras.
Também fui considerada mimada, mal educada e egoísta, por não gostar de compartilhar talheres, copos ou mordidas da comida que eu continuaria comendo. Lembro de inúmeras ocasiões em que, inclusive, fui forçada a compartilhar, e ninguém jamais compreendeu ou tentou compreender que era algo mais psicológico para mim. Não era como se eu conseguisse controlar o enjoo no estômago e a dormência nas mãos quando eu precisava pegar de volta o picolé lambido. E também não é como se eu não pudesse ou não devesse aprender a compartilhar, mas haviam jeitos menos dolorosos e traumáticos de se fazer isso.
Eu era tímida, e por mais que adorasse meus parentes, às vezes eles eram barulhentos e incômodos, e eu não queria falar com eles, mas eu não tinha o direito de ter meu tempo e espaço respeitados sem ser, novamente, taxada de mimada. Por eu estar sendo criada pelos meus avós, a única resposta para qualquer comportamento atípico ou diferente do desejado era que meus avós me mimavam muito.
Eu também achava, e acho até hoje, muito, mas muito difícil mesmo, falar com estranhos. Interagir com alguém para comprar algo ou pedir informações ou para ser atendida em algum serviço do qual preciso é uma tormenta que eu evito e adio ao máximo até hoje, mas a medida que fui crescendo, fui apenas empurrada a fazer isso, não importando o quanto pudesse me afetar, ou quão mal eu ficasse depois. Crise de choro? Crise de enxaqueca? Tremer e não conseguir falar por um tempo devido ao trauma de interagir quando não estou mentalmente preparada para isso? "Você já é grande, tem que se virar sozinha!". Novamente, não acho que eu não devesse fazer todas essas coisas. Novamente, não acho que a forma adotada pelos meus familiares foi a mais saudável. Principalmente porque, hoje, quando já sou adulta, eles não podem mais me obrigar, e eu não evoluí um passo sequer em "me virar sozinha". Tenho um dente doendo há meses, mas para ir ao dentista, preciso interagir com a secretária e com o dentista, então eu provavelmente vou seguir adiando até ter um dente a menos.
Isso é basicamente o que eu faço para praticamente tudo que envolva eu ter que lidar, sozinha, com interagir com qualquer estranho, por qualquer motivo. Eu até mesmo desço na parada errada quando o motorista não pára na minha parada após a sinalização com o botão, porque não consigo abrir a boca e dizer "motorista, vai descer aqui". As palavras vem na minha cabeça bem fácil, mas a ponte que transfere elas para a boca e depois para o mundo nunca foi construída.
A adolescência é um pesadelo para qualquer um, mas imagine para uma pessoa autista que não sabe que é autista e, portanto, não sabe que o padrão dos outros não é o seu. É como tentar encaixar a força e a custo de qualquer dano um quadrado em uma forma redonda. E o resultado foram pensamentos suicidas quase diários e inúmeras crises em que eu acabava socando a parede até minha mão ficar roxa ou cortando meu braço inteiro com uma gilete. Acho que eu nem tinha treze anos quando isso começou.
Tentar me encaixar no padrão das outras pessoas da minha idade me trouxe uma série de pequenos traumas que eu ainda trabalho. Vários colapsos em shows ou baladas porque estava cheio, barulhento e/ou brilhante demais. O pior de tudo? Eu nunca percebia o quanto essas coisas estavam me afetando até estar aos prantos incapaz de parar de tremer ou me debater.
Fiz sexo com três homens a minha vida toda. Quis fazer sexo com um homem a minha vida toda. Não, não fui estuprada. Não, eu não queria e não me sentia confortável para fazer sexo, mas eu era normal, eu era como todo mundo e todo mundo estava me dizendo, incansavelmente, que sexo era maravilhoso, que eu devia fazer, e que eu estava perdendo o melhor da vida. Só que eu não era como todo mundo. E essas experiências sexuais ainda voltam como traumas e às vezes me fazem chorar até hoje. Não culpo meus amigos que insistiram tanto para que eu transasse, afinal, eles não sabiam. Mas eu culpo o sistema falho, e a falta de pesquisas que poderiam ter ajudado a me diagnosticar antes. Assim eu teria aceitado muito antes que sexo, para mim, é completamente diferente do que é para outras pessoas porque eu sou autista. E teria parado de forçar o quadrado a encaixar na maldita forma redonda.
E para quem ainda acha que meu autismo leve que não foi diagnosticado antes não faria diferença para mim porque, afinal, eu cresci, terminei uma faculdade e consegui um emprego sem um diagnóstico, termino este texto com o relato do meu agora.
Acabo de passar um dia inteiro no trabalho sem conseguir dizer uma palavra sequer por uma condição chamada mutismo seletivo, que acontece quando pessoas autistas estão em momentos de extremo estresse e exaustão com o mundo. Também tenho um quadro depressivo, um pulso ferrado e uma crise de enxaqueca decorrentes de um colapso nervoso, que tive há dois dias, em que não consegui controlar meu corpo e me impedir de bater os braços e a cabeça na parede.
Esse tem sido meu agora há quatro meses.
Ainda assim, pela primeira vez em 14 anos, não penso em suicídio todos os dias da minha vida porque, agora, eu entendo que sou um quadrado. Pela primeira vez, eu consigo passar mais de uma semana sem dores de cabeça fortes porque agora entendo minhas limitações e não me exponho a sons, luzes e cheiros fortes que, nesse mundo neurotípico, são excessivos. Pela primeira vez, eu consigo acordar feliz e ter esperança de que minha vida realmente vai melhorar porque, finalmente, eu me entendo e me aceito como sou.
O diagnóstico precoce não faria diferença...
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