terça-feira, 31 de maio de 2016

Da primeira vez, eu tinha cinco anos, talvez menos. Tudo que eu lembro é de estar sozinha num quarto diante de um cara sem roupas que me pedia pra tocá-lo. Eu não faço ideia do que mais aconteceu além disso, e tudo que eu lembro são flashes, mas eu sinceramente não sei se quero me lembrar de mais. E mesmo lembrando só disso, muitos transtornos da minha infância e adolescência só fizeram sentido com essa memória frágil. Nunca contei sobre isso pra ninguém até pouco tempo atrás.

Da segunda vez, eu já tinha dezoito, já estava trabalhando e precisava pegar ônibus pra ir e vir do trabalho todos os dias. O percurso era de dez minutos, e o ônibus era sempre muito cheio. Numa dessas vezes, um homem parou atrás de mim e começou a se esfregar. A princípio, eu pensei que fosse acidental, que fosse por o ônibus estar mesmo muito cheio, mas quando olhei pra trás, ele sorriu irônico pra mim. Eu ainda tentei me afastar, chegar mais pra frente, e acabou que fiquei presa entre ele e a roleta, que eu não tinha como girar porque o caminho estava todo obstruído por pessoas. Ele se aproveitou disso por todo o trajeto, e em todas as vezes em que eu olhei pra ele, ele tinha uma mistura de ameaça com ironia no olhar, e eu fiquei calada. Tive vergonha demais pra pedir ajuda pra cobradora, pra gritar em alto e bom tom que ele parasse de usar a situação pra abusar de mim (sim, isso é um abuso), e passei os dez minutos tentando, de alguma maneira, me livrar dele enquanto ele fazia aquilo. Só consegui me livrar quando desci, e quando cheguei em casa, estava aos prantos, soluçando, me encolhendo e com nojo de mim e dele. Demorei uns cinco minutos pra conseguir dizer ao meu pai - muito envergonhada - o que tinha acontecido. Não esqueço as palavras dele. "Isso acontece, é assim mesmo, não precisa chorar assim". Eu te amo, e o senhor é o homem que eu mais respeito no mundo, papai, mas não, isso não é assim, ou ao menos não deveria ser. Eu ainda fui tolinha de tentar ligar pra companhia de ônibus com uma queixa, mas o que eles disseram foi que não podiam fazer nada. Nada foi feito. Eu ainda lembro o rosto do homem até hoje, cinco anos depois.

A terceira vez não envolveu situações de abuso físico de fato, mas envolveu uma situação que eu levei quatro anos pra perceber, quase em choque, o caráter abusivo. Ele foi meu namorado por mais de um ano, era um namoro a distância, e talvez por causa disso, muitas pessoas vão dizer "por que você fazia o que ele mandava se ele nem aí estava?", ou "Tá vendo? Namorar pela internet dá nisso", e eu entendo, também me pego muitas vezes pensando que a culpa foi minha por ter aceitado, por ter permitido, por tanto tempo, tudo o que aconteceu. Mas era pra ser um relacionamento normal, gostoso, e até tiveram momentos bons. Ele sabia ser romântico quando queria, sabia como fazer eu me sentir especial quando queria algo. O problema era o resto do tempo, principalmente quando a gente brigava, e a gente brigava muito. Ou ele brigava muito. A primeira briga, na semana em que começamos o namoro, foi porque eu saí pra lanchar com as minhas tias e nós demoramos mais do que ele achou que devíamos ter demorado pra um simples lanche. Ele brigou comigo por metade de uma madrugada, gritando, dizendo palavrões e tentando, de todas as formas, me convencer de que era um absurdo eu ter saído pra lanchar e ter demorado tanto. Acusou-me até de ter feito outras coisas, ter saído com outras pessoas, e no fim, conseguiu me convencer de que o erro foi meu. Uns poucos meses de namoro, e nós tínhamos brigado mais do que todos os dias do namoro em que estivemos juntos de fato. Ele brigava quando eu conversava com algum homem - qualquer um - na faculdade ou no trabalho - qualquer coisa que passasse de um "oi" frio e seco era motivo pra briga -, brigava quando eu usava saia, short, regata ou qualquer peça que ELE julgasse ser decotada ou colocar em evidência, ainda que sutilmente, qualquer curva minha, brigava se eu usasse batom ou perfume pra ir pra faculdade ou pro trabalho, brigava se eu saía de casa e chegava uns minutos mais tarde do que eu tinha dito que chegaria, e se eu ia pra qualquer lugar diferente do previsto ou com pessoas diferentes das que eu tinha informado. Claro, se eu ia sair, com qualquer pessoa, eu precisava avisar com dias de antecedência, e precisava deixar claro onde ia, com quem ia, e por quanto tempo ficaria lá. Meu horário pra voltar para casa: onze da noite, porque mulher sozinha não tem que estar na rua depois desse horário, é perigoso, é coisa de mulher vadia. "Pra que que você vai passar batom pra ir pra faculdade? Você quer chamar atenção de algum homem? Perfume? Tá louca? Você não acha que passar perfume e batom vai chamar atenção de outro homem pra você? Nenhum homem tem que olhar pra você, você não tem que ficar se vestindo pra chamar atenção de outro homem, você tem namorado! Tem que usar roupa comum e tênis, roupa sem decote, pra ninguém ficar te olhando. Como você acha que eu fico de saber que você tá vestida demais por aí e tá chamando atenção de outro homem? Você não pode se vestir assim se quiser ser minha namorada, namorada não faz isso, namorada não chama atenção de outro homem pra ela, mulher comprometida não tem que falar com outro homem. O que? Ele falou oi sorrindo pra você? Você vai cortar ele! Nunca mais vai falar com ele!" Foram muitos meses de brigas até chegarmos a um acordo. O acordo? Fizemos uma lista de "regras do relacionamento", que incluía todas as coisas que eu podia ou não podia fazer. Claro que ele monitorava tudo que eu fazia, e até as músicas que eu escutava. "Isso é música de vadia! É isso que você quer? Dançar a noite toda e pegar alguém na pista de dança? Porque é isso que a música fala, e se você escuta isso, você quer isso! Se você quer isso, vai lá, vai ser vadia! Eu não quero namorada vadia que escuta essas merdas!". Em todas as nossas brigas, ele sempre acabava gritando, sempre xingava, sempre partia pra ofensa pessoal. No começo, eu também gritava, porque perdia o controle com ele gritando o tempo todo. E minha avó sempre me censurava. "Você não pode gritar com ele" "Mas ele também gritou comigo" "Mas você não pode, você é mulher, tem que respeitar". Ele fazia Medicina, eu fazia Direito, e isso significa que ele era muito mais inteligente que eu, e que o curso dele era muito melhor que o meu, e que ele era muito melhor que eu. Claro que eu nunca podia discordar da opinião dele, nem dar opinião sobre coisas que não envolvessem "assunto de mulher" porque eu não sabia de nada e estava falando merda. Eu trabalhava o dia inteiro, estudava de noite, mas era ele quem sempre estava mais cansado, era ele quem sempre se esforçava mais, se estressava mais, porque afinal ele fazia medicina, e eu só trabalhava numa escola e não fazia nada o dia inteiro, e direito era o curso mais fácil do mundo. Meus amigos, obviamente, não gostavam dele, e eu me afastei de todos eles, porque eles eram "má influência", queriam que eu fosse vadia, e isso ele não ia aceitar. Papai sempre dizia que ele ia acabar me batendo um dia, e eu sempre brigava com papai por dizer isso. Até que um dia ele bateu. Foi só um tapa, mas doeu tanto. Doeu na alma. Doeu pensar em todas as vezes em que papai disse isso e eu briguei porque "Fulano me ama, ele nunca faria isso, o senhor só diz isso porque não gosta dele". Doeu ver que eu estava errada, e doeu saber que o homem que eu amava e por quem estava deixando tudo tinha me batido. E o tapa nem foi o pior. O pior foi quando eu me afastei incrédula, chorei, solucei, me debati porque não queria ele perto de mim, e ele, pra tentar fazer eu esquecer tudo ou me sentir culpada, fingiu que estava passando mal. Ele prometeu que nunca mais ia fazer isso, eu perdoei. Um dia ele desrespeitou o pai dele porque o pai dele disse "leva a identidade" quando estávamos saindo, algo que fazia sempre, e eu cometi o erro absurdo de censurar ele. Ele brigou comigo por eu tê-lo censurado, disse uns absurdos, umas ofensas que me deixaram zangada, então eu me afastei dele e comecei a andar à frente, mais rápido, mas mulher nenhuma anda na frente dele. "Volta aqui, você tem que andar comigo!". Não voltei. Ele me agarrou pelo braço e me puxou. Meu braço ficou roxo. E além das agressões físicas, tinha também toda a chantagem emocional, que ele sabia fazer bem, porque sabia o quanto eu gostava dele e o quanto, depois de ter me afastado de todos os meus amigos, eu precisava dele. Eu só tinha ele. Foram tantos xingamentos que eu perdi a conta. Nunca esqueço o último deles, o estopim pra eu terminar. Eu estava querendo viajar pra vê-lo e precisava dele pra definir as datas, mas ele estava enrolando e as passagens encarecendo. Quando já estava ficando em cima da hora demais, eu pedi que ele se apressasse. Ele me chamou de "demente do caralho". Isso foi piada entre os meus amigos, dos quais eu voltei a me aproximar quando a situação com ele já estava ficando insustentável. Me juntei a eles nas piadas e nas risadas. Meus amigos nunca souberam o quanto aquele "demente do caralho" doeu. Também nunca souberam o quanto doeu o puxão no braço. Ou o tapa. Ou todas as outras ofensas, e todas as vezes em que ele me diminuiu. Por eu não fazer medicina. Por eu gostar de coisas que ele não gostava. Por eu ser mulher. Ele fez tudo isso comigo porque ele acreditava que podia fazer, porque ele achava que eu era uma propriedade dele, que eu só podia fazer o que ele permitia, agir segundo as regras dele. E ele acreditava nisso porque ele foi ensinado a acreditar nisso. Ele foi ensinado a acreditar que eu era uma propriedade dele. Não sei se os pais dele ensinaram isso a ele, mas a sociedade ensinou. Porque a sociedade é assim. A sociedade ensinou aos homens que eles tem que mandar, que é direito deles ditar o que as mulheres "deles" podem ou não fazer, o que elas podem ou não usar. A sociedade ensinou a homens como este meu namorado que eles podem xingar, ofender e diminuir mulheres porque elas são mulheres. A sociedade também ensinou, por muito tempo, que mulheres tem que se submeter aos homens, que elas tem que obedecer. E foi por isso que, por tanto tempo, eu aceitei tudo o que ele fazia, eu engoli calada tudo que ele me dizia. Foi por isso que, por mais de um ano, eu achava que aquilo era normal porque "homens são assim mesmo". Foi por isso que eu demorei tanto pra perceber que eu fazia parte da estatística de agressão e abuso contra a mulher.

E é por isso que precisamos do feminismo. É por isso que precisamos lutar contra essa cultura que ensina homens a ver mulheres como propriedade e a tratá-las como bem entenderem, e ensina mulheres a aceitarem caladas o tratamento abusivo que recebem.

Mulheres, se alguma de vocês vive o que eu vivi e narrei acima, saibam que isso também é abuso, que isso está, inclusive, na Lei Maria da Penha. Constranger, ofender, humilhar, xingar, desvalorizar moralmente, oprimir, controlar, e até essa segurada com força, tudo isso também é violência, e nenhuma de vocês precisa passar por isso. Não sejam como eu, não demorem tanto a perceber que vocês fazem parte da estatística de vítimas da violência doméstica, e não demorem tanto a sair dela. Não importa o quanto amemos alguém, nenhum amor deve superar nosso amor próprio.


Texto escrito para o facebook, mas eu ainda não estou pronta pra tornar tudo isso público, então que fique aqui.